Contos

A espuma, numa longa linha tortuosa e cambiante, borbulha onde as águas do rio com as do mar se encontram. Ela avança por milhas águas adentro com sua inconsistente maneira de espumar e deixa um rastro alvo sobre as águas turvas. Distantes do litoral, aonde a vista mal identifica a espuma, gigantescos cargueiros estão atracados subindo, descendo e subindo com as ondas numa dança aleatória. 

Aqui na areia estamos, esparramados em nossas cadeiras de praia, curtindo a brisa suave, ouvindo a rebentação. Em sua mão negra e enrugada como um papel amassado, o coco verdinho dança. Ele faz um movimento giratório, uma, duas vezes, ondulando, e então para. Ela toma uns longos goles da água de coco fria e depois se encosta na cadeira, se acomodando.

Seus cabelos brancos estão presos num coque, atravessados por um hashi de um marrom profundo. Sua face, levemente oval é adornada por seu queixo decidido e feminino. Com as pernas cruzadas à frente, balançando um pouco o corpo, os pés mergulhados na areia ela sorri íntegra e sorrateiramente.

O metal do longo canudo ondula na abertura da boca do coco, mergulhado na água fria e leitosa. Sem pressa pra responder, ela matuta por longos minutos, repetindo algo bem baixinho. Acho que diz: profundo, profundo…

De nosso local favorito, na praia, avistamos a dança das águas doce e salgada que segue até aonde o sol vai beijar o mar. Normalmente, as águas nessa trilha se atropelam e serpenteiam no seu vai e vem de tal forma que vemos apenas turbulência e a longa linha de espuma que avança à margem da agitação. Mas às vezes, o encontro de flúmen e oceano se pacifica e uma lagoa se forma. Nela, a imagem febril do céu – nuvens largamente espaçadas ora douradas, ora fogosas, lilases e vaporosasse espelha na lâmina d’água…

Ela está muito absorvida na cena com os olhinhos mais e mais distantes, meio perdidos no rosto ovalado. As folhas dos coqueiros voam quase, na praia alongada, dando à cena um aspecto metafísico. O calor da tarde então se dispersa pelo sopro dos céus, com sua brisa abundante. Ela me olha seriamente nos olhos, como se daquilo dependesse meu futuro e passado e diz em tom enigmático: 

“Pela força natural das passagens, os seres ensinam-aprendem uma coisa a um só tempo trivial e essencial: o raso-profundo… Aquilo-isto é ensinado das mais diversas maneiras e com as mais diversas sonoridades, mas parece pouco para convencer os pessimistas” – Ela se chegou mais pra frente na cadeira e finalizou:

“Um dia até o mais egrégio dos pessimistas passará pelo eterno instante de rendição e novamente será a glória!”

E à sombra dos coqueiros bailarinos, ao som das ondas quebrando na praia, que nos são testemunhas, ela me falou de algo mais, algo mais impalpável: “Rápido se pode cair em ideias…

II

Senti um enorme alívio quando a cachorrinha desviou de mim e correu dando a volta pela esquerda do meu banco. Pude desviar os olhos. Respirei fundo, tranquilizado. Pensei em como Marô e Lana haveriam se deliciado com a oportunidade de passar justamente pelo oposto, de dar de frente com a cachorrinha para agarrá-la e entregá-la à ela. Eu, o que sentia era um desafogo no peito sem nome.

Inclinei-me então para ver a cachorrinha por debaixo do banco aonde estava sentado enquanto ela caminhava em minha direção. Inclinado, por entre minhas pernas, vi os arbustos se mexendo no escuro e pensei na silhueta dela vindo contra o sol. Pensei no quanto aquele rosto e aquela silhueta invadiam minhas matutações, meus fantasmas noturnos e minhas horas mortas. Lembrei da forte impressão que ela me dava e como me fazia tremer por dentro e por fora. Pensei que provavelmente tremia muito agora, mas não saberia dizê-lo por estar anestesiado e maravilhado. Sei que ela chega mais perto.

– Ali, acho que a cachorrinha se escondeu bem ali! – Lembro-me de como me havia espantado por aquela frase sair com tanta naturalidade. Dita daquela forma uma tão simples frase havia se tornado um machado rompendo o gelo. Ela chegou perto, e ficou entre eu, sentado no banco, e o sol. Ela olhou-me bem nos olhos… Um novo dia se fez: nos reconhecemos como desconhecidos e, portanto, inocentes e plenos de novas aventuras a oferecer.

Ainda que eu já a conhecesse de meus sonhos.

Fiquei de pé e nos sorrimos. – Deixa eu te ajudar – eu disse, novamente sem a estranha timidez do meu dia-a-dia. E dei a volta no arbusto.

É incrível, não é mesmo, como às vezes basta uns dois ou três passos para que o mundo ao redor totalmente se transforme? Ali, na entrada da floresta, o chão estava totalmente coberto de folhas amarelas entre muitas e muitas árvores a perder de vista. A luz entrando com força pelas copas formava colunas alvas iluminando floresta a dentro. Mas da cachorrinha, não havia qualquer sinal. Olhei para trás e você me sorriu.

Foi assim que nos conhecemos.

III

Novamente me sento em frente à fogueira crepitante, ouvindo a cascata. Tenho dúvidas, sou falível mas sou-nada. Sigo sem entender por que batalham deuses e diabos, deito-me com o Natal, desperto com a quarta feira de cinzas. Não como nada. 

Nas madrugadas, o Lobo Guará ronda nossa barraca, como havia feito o lobo branco, e enquanto escuto também relembro patas caninas quebrando os galhos secos do Cerrado; tremo desde a base enquanto Ele rosna de pavor das máquinas. Os defensores da criação temem a própria vitória. Quanta responsabilidade! Desprezo o meu desprezo. Minhas palavras, como bolhas na água, sobem turbulentas, sem causar estragos.

Ele se senta ao meu lado e puxa seu tabaco. Da carranca, dentes amarelos, baba, sua raiva. Penso que somos uma miríade de vírus e lactobacilos, feitos de uma miríade de componentes microbióticos. Que também somos ossos, tendões, órgãos e carne e sangue fervendo nas veias e filhos que daí decorrem, filhos e mais filhos, netos, bisnetos e toda uma extensa rede de herdeiros e herdados. Que ainda por cima somos poeira de estrelas e o próprio universo somos. Que somos carne e espírito, aquilo que se agarra mas passa, aquilo que não se nota mas tarda. E que somos mais do que essas dualidades, pois dualidades são apenas uma forma de ver o mundo, que em si não passa de uma miríade de continentes e oceanos, plantas e bichos e vírus que infectam lactobacilos quase mortos. Não deixo de me preocupar com a dor moral que sente a espiral negra no centro de cada galáxia e com aonde vai levar todas essas gravidades extremamente condensadas. Queria desvendar ainda de onde vem as mentes dos fetos das gerações futuras…

Ele assopra sua fumaça na minha cara e me gela a espinha o medo de sua dentada, da raiva transmitida por sua baba, do desconforto gástrico desse tabaco abençoado. Então este avião, ou esta barraca, e todas as coisas dentro, flutuam por um décimo de segundo e logo em seguida outra vez as coisas flutuam e dá um frio incontrolável na barriga aonde um vazio se dilata, agora outra flutuada mais demorada. Nessa terceira rebatida vem a louca turbulência e eu imploro (a quem!?) que esta não seja minha hora! Que eu ainda esteja vivo para ver crescer o meu filho, e que ele não tema como eu o fim da história, que ele não duvide como eu das palavras dos verdadeiros mestres e que possa ser feliz e íntegro, sábio inocente, rico de tanto amar os miseráveis. As lágrimas rolam por minha face e sei que não sei nada. Lembro de suas mãos negras e do seu cabelo branco e escuto a voz melódica e distinta da vóinha bem perto de mim:

  • É pelo medo de amar quem, ao parecer, nos faz mal. Assim se erra o alvo.

A lua adormece as nuvens ao tornar-se nova e escura de intenções claras. Ele agora está lendo minha história. Com suas patas peludas segura e vira as páginas, examina com deleite as palavras e uiva quando não gosta de um trecho, uiva até escorrer a baba. Ele me pergunta se estudei inglês na infância, se nunca morei no mato, se desvirginei moças inocentes e se estou do lado Dele ou do Fim da História. Ele não sabia ler até ontem, foi o que me disse, e agora uiva como uma besta educada.

De repente me dou conta de que sorrateiramente entraram outros bichos na barraca. Tem uma anta logo atrás do Lobo e ao lado vi um porco do mato, você me diz que até tamanduá estava nalgum lugar deitado! Pego tua mão e sussurro que não grites, pois eles certamente entraram enquanto dançávamos em epifania junto ao fogo, sem gritos, que não despertes os vizinhos inexistentes. E quanto mais baixinho peço, mais eles uivam, mais eles rosnam e bufam e chiam e fazem esses ruídos que não tem nome pois nunca foram catalogados. Logo estaremos novamente ao redor da fogueira e o mundo será laranja como uma jabuticaba e esqueceremos as belas letras e o abecedário. Amarei até esquecer da cultura que venera o perfeito desconhecido enquanto o devora e o corrige com versos recitados ao contrário. Cultura que ri sobre um paraíso roubado. Por eles criado?

Mas isto não é amor, alguém pensa, é vontade de sentir-se amado. E vontade de sentir-se admirado e lembrado após a morte e que ainda por cima isto não nos ensina nada que já não tenhamos aprendido e re-escutado. Algo em que cremos e não colocamos em prática, algo ausente do corredor 712 do nosso departamento de limpeza, algo que se compramos em dobro, não nos entregam de graça. Algo que não se acumula como espelhos e dentes de ouro, algo que não entope as veias, como açúcar, ou as fontes de água nas matas. Algo que soa como moinhos junto à Casa Grande. Mais que chicotes no navio negreiro ou no canavial dourado. Como o coito que gerou o primeiro cafuzo e o gozo do terceiro mulato…

E por fim resta uma silhueta e a fogueira, à sombra da lua nova, que ajuda os teus olhos a devorarem esta página.

 

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Penso em beber mais, este licor é gratuito, ou melhor, tudo aqui já está pago. São onze da noite e a gente segue respirando com dificuldade, o bafo quente que desce do magnífico teto de cimento e vidro em desenhos abstratos mas ousados deixa claro o absurdo de vestir-se nesta última moda, pomposa, num país como o México. Enquanto isso, um senhor com uma barriga dura e inchadíssima passa pavoneando-se sem camisa em frente ao trio de música que faz cover e, sinceramente, eles tocam pra caramba diante do cavalheiro de imensa auto-estima.

Estou tentando me mudar desta região pra não cair mais nos caprichos e descontentamentos do meu vício. Tento evitar a carnificina. Mas fiz as contas, faltam 550 mil para pagar e o que tenho ainda é pouco. Sempre será pouco para quem sabe que só valemos o que pesamos, em ouro ou moedas de 2 com a cara da rainha. Irmão, me ouça, sempre será grave. Mas o que falo?

Mergulhei no mar com os crocodilos, escalei paredes, fui andando molhado pelo salão, recebi uma toalha de um garçom, agradeci e perguntei se o Tony já tinha chegado. Disse que não, mas ficou pensativo e me pediu que esperasse, que iria conferir com alguém lá dentro. Enquanto devolvia-lhe a toalha, pedi-lhe um Dragón Rublo que, uma vez tendo pousado em minha mesa minutos mais tarde, passou a falar-me sem nunca parar para tomar fôlego sobre sua família e antepassados, sobre seus 4 filhos e a evolução ao longo dos anos da rotina de voos e tiros ao alvo para tocar o terror naquelas bandas. Contou-me ainda trabalhar quase 60 horas por semana divertindo o público e assustando crianças inocentes neste resort de luxo. Um empreendimento que, como muitos outros, desrespeita as leis trabalhistas e a dignidade de seus funcionários, pouco importa a espécie. Antes do fim da noite, acabarei beijando uma iguana dessas de um metro e meio que vivem nas ilhazinhas de palmeiras no meio das piscinas com receio de me deitar com uma clienta devorada por mosquitos e pelo calor que vem me chavecando há cinco dias e hoje decidiu sentar ao meu lado. Somos todos muito educados, o mundo se acaba em chamas claras. Este calor persistente não é normal, já quase não há mais quem o negue. Vamos rumo à catástrofe? Preciso de outro trago.

O fingimento é a única tática de quem sabe estar errado. Mas há quem não creia em certo e errado, assim não podemos saber quem está fingindo. Pra ser sincero, nos dias de hoje, nestas bandas, o certo é o errado.

A música que começara boa está cada vez pior e daquele furor empolgante da levada mexicana só sobrou o gemido irreconhecível do pop do norte. Boa sorte, penso. Bebo mais, o calor ainda demora e é quase insuportável… Felizmente me pagam para ir aos resorts, faço truques de mágica.

Umas cem crianças de rua batem com seus copos vazios de lata nos portões dourados do hotel, pela TV, cem delinquentes arrodeiam a polícia em algum bairro distante e convulsivo, dez políticos denunciam isso como o fim do mundo sem nenhum efeito e um homem de sucesso conquista a princesa da discórdia; dou graças a Deus, estou sozinho.

Deu meia noite, a senhora comida pelos mosquitos está quase apoiada em mim e beberica seu drink, peço licença e vou ao banheiro. O cheiro de merda dos ricos é muito parecido ao cheiro de merda dos pobres ainda que o aroma à lavanda, hortelã, alecrim ou vai saber o quê, tente dominar o ambiente. É inútil. Me dou conta de que o barrigudo sem camisa sai de uma das cabines chiques com vaso sanitário. Ele me vê, me cumprimenta, ele tem um rasgo no meio do peito, de um marca-passo, que me faz pensar no talho de uma facada que marca o corpo do tio da minha patroa.

Esse tio da patroa é um cara debochado e beberrão e me traz garrafas de vodka quando sabe que estou em casa. Bebo por hábito, bebo pra não deixá-lo sem graça.

Agora devo voltar ao meu quarto, as luzes se apagam. Cansei de esperar que me mandem uma mensagem. Já aguardo há mais de uma semana. Passo pelo palco, o trio parou faz tempo e da senhora gulosa não há nem sinal, agradeço enormemente por isso, amanhã começo cedo a divertir a molecada na beira da piscina. Das 9 ao meio dia são horas de felicidades e lhes trago magia e palhaçada até que o sol comece a nos dobrar e tostar como palitos de carne. Daí pra frente sou um zumbi em chamas. Aplaudido por mães magras orgulhosas ou gordas sem vontade. Prefiro as gordas, sempre gostei de gente realista.

Não me levem a mal, amo todas as pessoas que por aqui transitam e só espero que sejam alegres e boas, como todos são no fundo quando não há impedimentos, dívidas, compromissos, expectativas, o ponto da madrugada…

Saio do salão passando pela saída na lateral do saguão e desço as escadas que levam à traseira do gigantesco edíficio. Ando entre os espelhos d’água e chego a outro prédio. Ao longe está a praia. O prédio tem quatro portas de entrada, tento a primeira, nada, tento a segunda, também não abre, me dou conta de que estou embriagado. A terceira cede. Desço muitas escadas até o andar mais baixo, chego numa encruzilhada de corredores subterrâneos. Estou perdido. Acho que estou no andar errado, porque meu quarto deveria estar por aqui. Tomo o corredor à direita e chego a outra encruzilhada. Paro, olhos para todos os lados. Alguém pergunta de um vão no corredor à minha frente, com uma voz destroçada:

  • Brasileño?

  • Sim, señor. – Respondo, ou contesto, sem bem saber o que faço. Fiz algo errado nessa andança… aonde vou meter a cara, sendo o mágico e o palhaço?!

Então me apontam uma arma no meio da testa, gelo instantaneamente e penso no olhar de ternura da minha mãe. Vem o código: “Comando de los cocodrilos aislados. Comando de los cocodrilos aislados!” Me sinto sóbrio no ato. Eles finalmente chegaram, sem mensagem, sem nada. Me entregam uma máscara ainda no escuro. Pedi que me entregassem a Browning. Escrevo agora como quem tem sangue nas mãos… O resort caiu! Vamos pro saque! Os crocodilos gargalham.

 

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I – Caminho tortuoso

Há não mais de um mês numa manhã fria e carregada, Andrei e seu cão dividiam em passos lentos as pedras mal-calçadas do parque próximo à sua casa. Seus movimentos eram incertos, seu rosto carregado, Andrei se via abatido e seu olhar vazio deitava ora ao céu chumbo, ora ao trajeto errático do companheiro. Por vezes parava bruscamente. Arregalava os olhos e tentava captar uma imagem à qual se agarrar no mundo exterior. Uma imagem que o afastasse de suas inflexões calaboucenses. Um casulo? Não apenas um casulo, mas um casulo descartado, vazio.

Deteve-se ali a observá-lo: cinzento, áspero, seco – que bicho faria daquilo um lar, ainda que passageiro? Não era pior que os túmulos, também cinzentos, ásperos, mas ao mesmo tempo úmidos, bizarramente úmidos; os mausoléus são pouco convidativos, mas, nem por isso deixam de ser uma morada definitiva. Apertados, escuros, invioláveis. Andrei caíra novamente em seu tétrico divagar e nenhuma ideia era picante o suficiente para fazê-lo desviar-se. Até que fechou os olhos um pouco, talvez para mudar de ideias, de repente deu um salto estranho pra trás e logo retomou o passo afastando-se do casulo e chamando seu cão – outrora um animal feliz e bonachão, agora doente e furibundo como ele.

Do que fugia aquele transeunte? “De seus sonhos”, diriam alguns, “de seu futuro” diriam outros; e talvez fossem a mesma coisa. “Antevisões” diria Andrei, “Imagens do inevitável”. Suas antevisões – já que assim o deseja seu progenitor – eram umas cenas singulares, que o acompanhavam há quase um mês.

Engano acreditar que essas antevisões de Andrei lhe dessem descanso após saído do turvo reino de Morfeu, pois mesmo acordado, bastava descuidar dos pensamentos por alguns segundos para reencontrá-las ali, no fundo das pálpebras, diante das retinas. Dias e dias seguidos de odientas imagens a lhe desestabilizar. Devido a essas antevisões, Andrei procurou um psiquiatra. A primeira consulta havia sido longa, mas o doutor, que muito perguntava, pouco dizia, concentrando-se em avaliar de si para si as inquietações do paciente. Em algum momento deixou escapar, em tom tranquilizador, que a ocorrência de sonhos perseguindo as pessoas mesmo depois de acordadas era mais comum do que imagina a maioria e que a psicanálise era útil em muitos casos. Andrei quis objetar, afinal não se tratavam apenas de sonhos, mas também de antevisões, mas preferiu calar-se sobre aquilo, por enquanto, para não soar exagerado. Ao final, o doutor receitou-lhe um ansiolítico (mais eficaz do que o que Andrei já vinha tomando por conta própria, segundo o doutor) e um outro medicamento que o paciente desconhecia totalmente.

“O farmacêutico vai te dar detalhes sobre como tomar essas pílulas, porque elas vêm em dosagens que podem variar de bairro pra bairro. É importante não tomá-las se for conduzir um veículo ou operar maquinário pesado nas horas seguintes. As pílulas te trarão um alívio de parte dos pensamentos repetitivos, segundo estudos clínicos recentes e bem avaliados pela comunidade científica. Mas, você deve voltar aqui no dia seguinte ao início do tratamento para outra consulta. Temos disponibilidade todos os dias até às 6h da tarde. –  O doutor então lhe entregou uma folha com mais informações sobre o medicamento. –  Agora muita atenção, Andrei, o que vou te dizer em seguida é algo muito sério e é algo confidencial que você só precisa explicar a certas pessoas…”

 

II – Aflições

 

Em meio a mais uma manhã nublada, Andrei voltava do consultório do psiquiatra perambulando pelo longo campo do parque não longe de sua casa. Haviam passado três semanas desde o início de seu tratamento e ele refletia sobre as nove ou dez conultas já feitas com o psiquiatras até ali.

Por um lado, ele podia notar melhora em certos aspectos de sua condição: a frequência das antevisões havia diminuído, algo muito positivo para ele, e quase sempre saía do consutório aliviado por poder relatar sua história e conhecer novas ferramentas para lidar com as antevisões, ou pensamentos repetitivos, como os chamavam o doutor.

Por outro lado, olhando as consultas em seu conjunto, espantava-se ao reparar quantas atitudes suas vinham atrasando-o de analisar o próprio problema. Muitas vezes, trazia à tona dezenas de coisas sem importância de seu pasado distante e perdia assim dezenas de minutos preciosos. Acontecia também de sentir a necesidade de usar subterfúgios e de pintar-se como alguém sensato, equilibrado e generoso. Mas, seus amigos e ele mesmo o viam de outra maneira.

Havia outras coisas desconcertantes. Se era bem verdade que a quantidade das antevisões havia diminuído desde o início do tratamento, sua intensidade, contudo havia aumentado. E mesmo assim, mais ou menos a partir da quinta consulta, Andrei começou a transmitir em suas falas a sensação de que elas lhe causavam menos impacto do que antes por serem menos frequentes. Isso não era nada bom, pois distanciava-se da realidade. Contudo, o mais estranho, Andrei o notava agora, era perceber como ele diminuía a importância de suas chagas para dar, não a si mesmo, mas ao doutor uma sensação de que as coisas estavam melhorando.

O parque ia chegando ao seu limite e ele estava quase animado por haver reconhecido, durante a caminhada, esses jogos de autossabotagem pelos quais estava passando. “É uma boa ideia falar disso tudo com o doutor…” era o que ele vinha pensando quando o gramado chegou ao fim. Ele parou na beira da rua, indeciso e finalmente optou por passar na farmácia antes de voltar pra casa.

Andrei Mostrou à farmacêutica a nova receita que o psiquiatra acabava de lhe passar e pediu um copo de água para tomar o medicamento, mas ela lhe explicou que devido à mudança na dosagem, ele não deveria tomá-lo antes das sete da noite.

  • De agora em diante o senhor deve tomar uma dose um pouco maior, mas apenas a cada doze horas e não a cada seis horas como antes.

Andrei olhou-a espantado, sem reposta, estava tendo um ataque de ansiedade só de imaginar passar a tarde inteira sem o alívio temporário das pastilhas. Porém, lembrou o que o psiquiatra lhe dissera por último, justo quando ia saindo do consultório naquela manhã: “Lembre-se, não fale de sua situação a ninguém até que nos encontremos mais uma vez. Cada vez mais, sinto que tem algo muito única nela”. Assim que, ali na farmácia, Andrei precisou disfarçar a suadeira e o desespero. Pagou a fatura calado e se foi.

Já em sua casa, para evitar de cair nas malditas antevisões, ele voltou ao “Labirinto”. O Labirinto era um método, ou um jogo mental, criado por Andrei, inspirado por um ensaio de Montaigne, aonde se encontrava a marcante frase: “À qui la mort se montre par avance et de loin, elle se montre plus douce.” Assim que propositalmente Andrei metia-se a pensar na dita-cuja e nas coisas dos reinos turvos.

Pelo resto daquele dia ficou enfurnado em sua casa só, em seu labirinto. Levou o cão apenas uma vez para passear, por ruas menos movimentadas, sempre trazendo à mente a morte. Por rotas pouco claras ia investigando o que seria o além-vida ideal e estava cada vez mais inclinado a crer que a inexistência era a única noção a lhe trazer tranquilidade. Desde o início de suas antevisões, seu grande desejo passou a ser cessar de existir.

O problema era que isso parecia-lhe impossível. Se Andrei era, ou, se ao menos algo podia ter o pensamento de ser Andrei, então, a inexistência era uma noção sem validade. Contudo, a existência, de modo geral, não invalidava a possibilidade de que a consciência se desvanecesse na morte. Essa era a meta dele, esse desvanescer. Porém, ele não tardou para dar-se conta de que as coisas não surgem do nada simplesmente e logo desaparecem. Elas sempre vêm de algo e passam a ser outra coisa. Assim que sua consciência provavelmente se transformaria, mas seguiria existindo após a more.

Para tentar se tranquilizar, Andrei queria concluir que a consciência não seria uma coisa qualquer, mas apenas um fio de pensamentos e, portanto, possivelmente finita. Ainda assim, ele tinha a forte sensação de que sua esperança era vã e que de alguma forma passaria por seus maiores temores não antes, mas depois de falecer.

Andrei mergulhava em reflexões desse tipo, só que nem sempre com o foco e o tempo de repouso necessários para incorporar mentalmente os segredos que revelava quanto mais avançava. Até por isso, em algum momento acabava voltando a desejar o Nada, imaginando que nele se acolhia, para simplesmente não mais ser.

De desventura em desventura aquela manhã avançou virando tarde. E tardes de inverno passam rápido. Elas passam e assim como a vigília resfogem temerosas da escuridão, agarrando-se em vão na linha do horizonte. Mas o horizonte, insinuando-se belo, róseo e imponente ao entardecer, logo envelhece e derruba a todos num desolador finale sem cor.

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